Pela primeira vez, a ciência conseguiu reproduzir em casa de vegetação a Paepalanthus acanthophyllus, planta típica do Cerrado mais conhecida como chuveirinho. De acordo com a pesquisadora da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (DF) Dulce Alves, que desenvolveu o método de cultivo, a descoberta abre a possibilidade não só de preservar espécies do bioma, mas também de novas oportunidades de negócio no mercado de plantas ornamentais e de mais opções para o paisagismo urbano da região.
“Existe uma cultura de importação de espécies para a construção dos nossos jardins. Vêm plantas até de outros países, que já foram melhoradas e têm um histórico de cultivo, porém, elas não são adaptadas às nossas condições ambientais”, explica Alves. Segundo ela, poucas espécies do Cerrado estão disponíveis para comercialização em larga escala, ainda assim, a maioria é formada por plantas arbóreas, como é o caso dos ipês.
“Eu comecei a me perguntar se a gente conseguiria cultivar essas espécies do Cerrado, principalmente as herbáceas, que têm um ciclo de vida mais curto e entram na fase reprodutiva mais rapidamente”, lembra a pesquisadora. Ela conta que ouvia sempre os mesmos comentários: “você não vai conseguir, porque planta do Cerrado não gosta de solo bom”.
“Por outro lado, comecei a perguntar para pessoas que não eram da área se elas achavam as plantas bonitas, e a maioria respondia que sim. Várias espécies do Cerrado são lindas, mas não estão disponíveis para venda em larga escala nos viveiros, pois ainda não foram melhoradas e existe pouca ou nenhuma pesquisa sobre técnicas de cultivo que se apliquem a elas”, assinala.
Esse potencial ornamental das plantas do Cerrado, associado à necessidade de preservação das espécies que têm perdido seu habitat rapidamente, motivaram a cientista a ampliar sua pesquisa, que era sobre sementes, também para o cultivo. “Como temos um projeto de ornamentais dentro do portfólio de recursos genéticos, comecei a cultivar essas plantas. Ao contrário do que se dizia, pouquíssimas espécies da região não crescem bem em solo bom”, revela a pesquisadora, que também conseguiu cultivar outras plantas da família do chuveirinho e a canela-de-ema.
Pesquisa começou por causa de um campo florido
“Sempre gostei muito do Cerrado, sou bióloga e ecóloga de formação e na pandemia comecei a trabalhar com essas plantas quando me dei conta de que a previsão de extinção de muitas espécies do Cerrado já estava se concretizando, enquanto no laboratório muitas das sementes usadas nos testes acabavam indo para o lixo”, relembra Alves.
Já as sementes de chuveirinho chegaram até ela pelas mãos de um colega, o analista da Embrapa Leonel Pereira-Neto, há cerca de quatro anos. “Ele estava em uma viagem e viu um campo repleto de flores da espécie. Achou lindo. Parou o carro e coletou os frutos, mas não conseguiu germinar suas sementes. Aí ele bateu na minha porta e disse: ‘A planta é linda! Tentei germinar e não consegui. Não tenho paciência, mas sei que você terá’”, conta.
O trabalho realmente não foi fácil. “Tive que usar a lupa, pois o fruto é minúsculo. Tive que abrir os frutos, olhar o que era a semente. Aí vi que a maioria dos frutos estava vazia. Então consegui finalmente começar a estudar a germinação e me apaixonei pela planta e por sua família”, relata a pesquisadora.
De acordo com ela, o chuveirinho tem um tipo de germinação muito diferente das outras plantas e dá bastante trabalho tirar as sementes de dentro dos frutos. “Mas mesmo assim consegui mudar a escala. Dessas sementes eu consegui a planta, aí dessa planta eu fui mudando o tamanho do vaso até que cheguei à floração”, detalha.
Um detalhe curioso é que, no campo, o chuveirinho chega no máximo a meio metro de altura. Mas na casa de vegetação, com solo bom, ele atingiu mais de um metro. No geral, as descobertas da pesquisadora foram sendo feitas na base de tentativa e erro, pois, praticamente, não há pesquisas sobre o assunto. “Consegui apenas uma dissertação de mestrado, da década de 1980, ainda assim de uma outra espécie e com cultivo a céu aberto”, comenta.
Para ela, o fato de não serem melhoradas é a única diferença das plantas do Cerrado para outras ornamentais que já são amplamente utilizadas no mercado. “É preciso pensar na ecologia da planta para conseguir bons resultados. O chuveirinho, por exemplo, só floresceu e completou o ciclo reprodutivo depois que eu ajustei o tamanho do vaso”, ensina.
Agora, a pesquisadora pretende encontrar parceiros no mercado para levar o projeto a outro patamar. “O objetivo é cultivar as plantas em larga escala e colocar à venda no mercado. Minha ideia inicial, tendo em vista o risco de extinção de muitas espécies do Cerrado, sempre foi promover o uso sustentável dessas plantas”, afirma. Esse trabalho pode envolver parceiros extrativistas e melhorar também a qualidade de vida de quem mora no campo e mantém o bioma em pé.
A vantagem, de acordo com ela, é que são espécies já adaptadas à região. “Por isso, uma vez passado aquele gargalo inicial, de elas crescerem, muito provavelmente vão precisar de menos manutenção e insumos do que espécies que não são daqui”, esclarece. A pesquisadora cita o exemplo de bairros nobres de Brasília, que têm jardins lindos, mas que, ao longo dos anos, vão se deteriorando, porque as plantas não são nativas.
“Muitas delas não aguentam uma seca severa e prolongada. As plantas do Cerrado, como já estão adaptadas à região, exigiriam menos cuidados. Pelo menos tudo indica que sim, uma vez que não existem muitos jardins com essas plantas para avaliarmos”, diz Alves, sonhando com uma parceria, no futuro, com a Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil (Novacap), responsável pelos jardins do Distrito Federal.
No caso de espécies da canela-de-ema (Vellozia squamata), Alves chegou à conclusão de que elas podem levar décadas para se desenvolver. “Em casa de vegetação, em dois anos no vaso, com terra boa, ela cresceu pouco”, conta. Mesmo assim, ela lembra que foi a um encontro com pessoas que trabalham com sementes de espécies nativas no ano passado e mostrou os resultados para os participantes, que se surpreenderam. “Disseram que ninguém nunca tinha conseguido germinar sementes e gerar mudas dessa planta com esse tamanho”, comemora.
A pesquisadora está trabalhando também com outras espécies herbáceas e até com uma frutífera, a Coccocypselum aureum, que tem um fruto azul anil e o caule rosa. “A gente está avaliando o potencial alimentício dela, para ver se os frutos não são venenosos. O conhecimento tradicional diz que não são, mas precisamos confirmar ainda”, pondera.
Segundo a pesquisadora, só duas espécies com as quais ela trabalhou até agora rejeitaram o solo bom. Ambas possuem mecanismos inteligentes de lidar com o alumínio. “É um mecanismo bioquímico bem interessante, que pode ser estudado para eventuais aplicações na agricultura”, conta.
Fonte: Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologiapa
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